domingo, 5 de julho de 2009

Um debate sobre "Um Copo de Cólera"

Olá, amigos, há algum tempo atrás, numa Comunidade do Orkut, travei com Ana Paula Peixoto, Edu Jazzy e Renan Lima (ex-aluno do CEMMF) uma discussão bem interessante sobre a intencionalidade do narrador-personagem dessa obra em manipular o leitor, tal qual fazia nosso brilhante Machado de Assis. Transcrevo abaixo, na íntegra, o debate. Os interessados em continuar a discussão, podem entrar na comunidade no link abaixo e mandar ver:

Comunidade - "Um Copo de Cólera"

Ah! os interessados podem também ler uma ótima resenha sobre a obra, escrita por Paola Benevides em "Um Copo de Cólera em análise".

Boa leitura.

Narrador-manipulador

25/06/07 Jorge - Narrador-manipulador

Parece-me que o narrador da novela "Um copo de cólera" busca manipular o leitor, a fim de levá-lo a acreditar que ele domina a relação com sua parceira. Faz isso para desviar-nos a atenção de sua insegurança quanto à própria virilidade. O que vocês acham disso?

04/07/07 RenanConcordo com vc Sim, o narrador tenta mostrar uma imagem de superioridade em relação a sua parceira, quando na verdade ela é dominado e fica sem reação a todo instante com as ações dela!!!!

09/07/07 Ana Paula - Virilidade de sobra
Ah, acho sim, que a idéia é manipular o leitor, mas não por insegurança em relação à virilidade; pelo contrário, o texto é uma puta manifestação de virilidade - e com muita segurança disso, até demais...

09/07/07 Ana Paula - Ele domina.
Não acho que ele fique sem reação diante dela; muito pelo contrário. Inclusive quando ele parece titubear ou recuar, é somente estratégia para nova investida. Ele está no comando o tempo interinho. Ele tem o domínio total da situação. Inclusive no último capítulo.

09/07/07 Ana Paula - Fragilidade simulada
Inclusive, quando o personagem narrador demonstra fragilidade, não passa de simulação, de encenação - mais uma estratégia para manipular o leitor. O leitor, tornado voyeur, é sua presa.

14/07/07 Jorge
Ana Paula, pareceu-me que no primeiro momento da discussão, o próprio narrador admite que a reprimenda feita por sua parceira ao seu comportamento explosivo talvez se devesse ao fato de ele "não atuar na cama com a mesma ardência empregada no extermínio das formigas". Além disso, reitera em alguns momentos da narrativa uma expressão utilizada por ela "eu não tive o bastante, mas tive o suficiente", e esta expressão, assim repetida, associada ao fato de ele também admitir, em alguns momentos, a superioridade argumentativa de sua parceira na discussão, parece mexer profundamente com seus brios. Talvez a simulação, neste caso, seja uma pseudo- simulação, ou seja, ele finge que tudo é fingimento para retirar o peso da verdade de seus ombros e isto serve como instrumento para que o leitor menospreze a informação e a tome como pouco importante. O que acha disso?


18/07/07 Edu
O sujeito que NECESSITA dominar é, na verdade, mais fraco do que o outro, ou ACREDITA sê-lo. Patente sinal de insegurança.

Por três vezes ao longo do filme (baseio-me nele para minha opinião), coloca-se um contraponto entre razão e amor. Uma vez que está em profunda confusão com seus sentimentos, descobrindo que não sabe o que é amor, o protagonista tenta agarrar-se à razão como tábua para não afogar-se. Qual a última frase da mãe no flashback c/ a família? Algo como

"Não há razão maior do que o amor".

19/07/07 Ana Paula
Obrigada por sua resposta, Jorge, gostei dela. Sim, o narrador em muitos momentos parece reconhecer, admitir, que fraqueja (ou não é tão potente) diante da moça, seja na argumentação, seja no aspecto sexual. Esses recuos o interessam, pois alimentam ainda mais sua fúria - e suas investidas se intensificam. Talvez você tenha razão, Jorge, em afirmar que a simulação seja uma pseudo-simulação (uma simulação fingida ou dupla simulação rsrs), principalmente porque ele tem em vista não só a interlocutora direta (a jornalista), mas também o leitor. Quero dizer que há um jogo de dupla enunciação aí, que devemos levar em consideração. O que eu acho é que há um grande jogo retórico ali, cheio de armadilhas para nós leitores; mas quem está no domínio retórico é ele. Bem, mas tenho outra dúvida aí (ele quem?), que surge quando toco na questão da dupla enunciação. Essa dúvida diz respeito a confusão que eu penso estar fazendo com os conceitos de narrador e o de autor implícito. O que pensam vocês, meus colegas?


19/07/07 Ana Paula
Também agradeço ao Edu as observações que fez. Edu afirma que aquele que necessita dominar é porque sente-se mais fraco. Ou, pelo menos, acredito, ameaçado de alguma maneira pelo outro. Creio que isso deve ser levado em consideração. E vou levar, sim, em minhas reflexões. Porém, não gostaria de confundir o livro com o filme...

24/07/07 Edu
Haveria aqui um jogo pessoano nessa dupla simulação, onde o protagonista "finge a dor que deveras sente"? Se o autor se confunde com o protagonista para realizar esse ardiloso jogo retórico, não teríamos que levar outros aspectos do próprio autor? Escrevi pouca ficção, mas li muito a respeito de autores. Parece que, ao menos a partir do modernismo, haveria certa tendência nos autores a colocarem traços pessoais seus nos próprios personagens, em suas obras. Mesmo que não seja regra, vejo esse subjetivismo muito forte no Raduan Nassar. O fato dele ter largado a vida em sociedade e a literatura prematuramente, tendo se isolado em um sítio, tem esse quê em comum com o protagonista do "Copo". Assim como suas raízes - e talvez algumas questões pessoais - tb estariam presentes em "Lavoura Arcaica".

Assim, penso que essa "confusão" provocada por Raduan não seja de todo proposital. Sem admirar a obra de literatura em si, sinto um certo não-distanciamento que provoca essa "fusão" entre autor e narrador.

Porém, se isso pode ser visto como falha ou incapacidade de Raduan como ficcionista, aí vou discordar. Ele estaria aproximando tanto a ficção da realidade - talvez, a sua realidade e a de muitos outros - , que é justamente esse fator que causa o impacto da obra no público.


03/08/07 Jorge
Paula, a dupla enunciação, realmente, fica em evidência. Penso, contudo, que a intenção de induzir o leitor a pensar que tudo não passa de simulação parte da personagem (o narrador) e não do autor- implícito. Observe os trechos abaixo:

“ator, eu só fingia, a exemplo, a dor que realmente me doía. Eu que dessa vez tinha entrado francamente em mim, sabendo, no calor aqui dentro, de que transformações era capaz (...)”

“Por alguns momentos lá no quarto nós parecíamos dois estranhos que seriam observados por alguém, e este alguém era sempre eu e ela, cabendo aos dois ficar de olho no que eu ia fazendo (...) e eu, sempre fingindo...” (NASSAR, 1992, p. 10).

“...eu na rusticidade daquele camarim...” (NASSAR, 1992, p. 33).

“...forjando dessa vez na voz a mesma aspereza que marcava a minha máscara...” “...eu puxava ali pro palco quem estivesse ao meu alcance, pois não seria ao gosto dela, mas sui generis, eu haveria de dar espetáculo sem platéia..." (NASSAR,1992, p. 34).

“(ela sabia representar bem seu papel) entrou de novo em cena me dizendo...” “... precisava mais do que nunca para atuar, dos gritos secundários duma atriz, e fique bem claro que não queria balidos de platéia”. “...fiquei parado (...) um ator sem platéia, sem palco, sem luzes, debaixo de um sol já glorioso e indiferente” (NASSAR, 1992, p. 38)

Reconheço, contudo, que para continuarmos nossa discussão acerca desse aspecto, preciso estudar melhor a noção de "autor-implícito" e fazer novas incursões na novela de Raduan. Só lamento não dispor de tempo para isso no momento, mas assim que o fizer, voltaremos a discutir.

03/08/07 Jorge
Ah, retomando o que o Edu citou de Pessoa "a dor que deveras sente", penso que há também na novela de Raduan um caráter significativo de intertextualidade, que merece ser examindo com atenção. É bastante proposital, Edu: “ator, eu só fingia, a exemplo, a dor que realmente me doía. Eu que dessa vez tinha entrado francamente em mim, sabendo, no calor aqui dentro, de que transformações era capaz (...)”.

15/08/07 Ana Paula - Narradores, interlocutores e autor implícito
Sim, não podemos esquecer que o narrador tem dois interlocutores. Um é a jornalista, com quem desenvolve todo um embate dialógico, e o outro é o leitor, para quem ele conta a história. No último capítulo, surge a nova narradora, que por sua vez também trabalha com essa duplicidade enunciativa. Por trás de tudo isso, optando por essa ordenação de vozes (primeiro a dele, do homem, que apresenta a fala dela editada, envolta e colorida pelos comentários dele, e finalmente - por último - a voz feminina), está o autor implícito.

As perguntas que se colocam, então, são as seguintes: por que a fala masculina ocupa a maior porção de páginas? por que a fala feminina ocupa justamente o final da narrativa? há uma hierarquia aí, ou não, pelo contrário, estabelece-se um equilíbrio entre ambos os narradores?

26/08/07 Jorge
Por que a fala masculina ocupa a maior porção de páginas?

Poque é justamente o machismo (e não o feminismo) que estaria sendo posto em cheque pelo auto-implícito, não pelo narrador-personagem. A voz narradora é machista. Embora reconheça o tempo todo suas fraquezas e sua inferioridade em relação à figura feminina (aqui encontramos um conflito entre a voz narradora e o autor-implícito), o personagem-narrador não adimite completamente a derrota e busca convencer o leitor (e a si mesmo) que está no controle da situação.

por que a fala feminina ocupa justamente o final da narrativa? há uma hierarquia aí, ou não, pelo contrário, estabelece-se um equilíbrio entre ambos os narradores?

A fala feminina encerra a questão, ou seja, confirma a superioridade da personagem feminina em relação à masculina, mostra ao leitor que, embora, o narrador-personagem busque ressaltar sua posição de comando (inclusive na simulação criada neste capítulo), é a mulher quem está no controle e lhe permite (ao simular submissão) a pseudo-sensação de "macho dominador". Sem permitir a réplica por parte do narrador-personagem, termina-se a obra com o ponto de vista dela (o mais importante), que, embora ocupe menor espaço na narrativa, é decisivo e contundente, uma vez que encerra a questão.


22/04/08 Ana Paula - Simulação
Pis ainda não estou bem convencida disso. Pra mim, naquele capítulo final, ela fala só porque ELE DEIXA, porque ele dá a vez - não sem antes deixar todo um cenário armado. Pra mim, ali há uma grande armadilha, na qual tanto ela quanto o leitor acabam caindo bem bonitinho... Será que não?

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