domingo, 24 de agosto de 2014

Criança não, nasci adulta

Olá, amigos, eis aqui mais um texto de memórias literárias produzido por alunos da Escola Municipal Tiradentes, em Nossa Senhora da Glória - SE por ocasião das oficinas da Olimpíada de Língua Portuguesa "Escrevendo o Futuro", edição de 2014:

Baú das Lembranças

Criança não, nasci adulta

Depois de muito insistir, minha avó, Maria Josefa, que hoje tem 77 anos, me contou a história de sua vida. “Não era uma moça das mais belas, mas era como uma pequena estrela entre onze irmãos. Fomos criados, eu e meus irmãos, como os meses do ano: Pedro, Gerino, Genevino, João, José, Antônio, Glória, São José, Maria de Lourdes, Maria Verônica, Gerdal e eu.

Fomos todos criados trabalhando na roça. Acordávamos era cedo, quatro ou cinco horas da manhã. Quebrávamos uma planta de juazeiro e passávamos a escova de dentes por dentro. Diziam que isso conservava os dentes. Comíamos um ovo estrelado com um bolinho de cuscuz e íamos para a roça. Não era muito longe. Depois que eu e meu compadre Pedro tirávamos o leite das cabras que o nosso pai criava, íamos cavar os buracos para plantar milho, feijão e algodão. Muitas vezes, quando tirávamos o leite das cabras, enchíamos uma tigela e tomávamos na hora. O leite saía quentinho do peito da cabra e ia diretamente para a tigelinha, chega vinha fofinho, como um travesseiro, parecia uma nuvem, e eu tomava em grandes goles, sem coar nem nada. Era uma delícia!

Às vezes, quando chegava em casa, minha mãe dizia:

- Esses meninos estão é com “fastio”! Saíram daqui morrendo e fome e agora não querem comer!

Como o leite de cabra é forte, a barriga ficava estufada!

Minha mãe criava um “magote” de moleques, um verdadeiro formigueiro. Eu fazia o almoço lá na roça mesmo. Era fava, um dente de alho, esbagaçava um ovo lá dentro e comíamos. Sei que deve estar se perguntando como era que cozinhava. Não, não era em um fogão de lenha. Eram três pedras que colocava apoiadas uma na outra, fazia o fogo e cozinhava em uma panela de barro.

Não tinha tempo de ir para a escola, só ia uma vez por semana, quando dava certo. Não completei a segunda série, nunca fiz prova como se faz hoje em dia. Ía a pé. Caminhava uma légua, se não me engano. Naquela época, não havia lanche na escola como hoje, era uma colherzinha de leite ninho de vez em quando, e olhe lá! Meu pai também implicava e não gostava que eu estudasse. Dizia:

- Que peste de escola! Quem dá comida é a roça!

Chega me dava uma tristeza, mas ainda aprendi a ler um pouquinho, sei apenas escrever meu nome “malemal”, pois quando vou escrever, erro as letras... aí, pronto, azeda tudo, parece que o Cão atenta e dá uma tremedeira na mão, que nem sempre acerto meu nome!

Logo no finalzinho da segunda série, comecei a namorar o finado José, aí pronto, que eu não estudava mesmo! Nosso namoro era assim: eu na ponta de um banco e ele na outra, só nos olhares. Não pegávamos na mão, se não meus irmãos diziam ao meu pai. Fuxiqueiros! Depois de quatro anos de noivado, ele me deu um beijo de surpresa, então pulei logo nos braços dele pensando: ‘Ave Maria, se meu pai sonhar uma coisa dessas, eu morro!’.

Meu falecido marido, antes de nos casarmos, me chamou várias vezes para fugirmos, mas nunca tive coragem. Fiz uma promessa a Nossa Senhora de que quando casasse daria minha grinalda de presente a ela... Dito e feito! Nunca soube como era um homem. Só vim saber depois do casamento. Hoje em dia, os jovens mal namoram, já estão fazendo tudo, beijam-se, abraçam-se e... Deus me livre! Aquilo é feio!

Os jovens de hoje têm uma vida boa. Nunca tive muito tempo para brincar. Quando isso acontecia, brincava com “capuco” de milho enrolado em panos velhos em vez de bonecas. Fazia panelinhas e chaleirinhas de barro, colocava no sol para secar, mas quando colocava algum líquido dentro, elas desmanchavam. Acho que não deixava queimar direito. Mas minha brincadeira mais séria era cuidar de meus irmãos enquanto minha mãe ia para a roça ajudar meu pai à noite. Antes de a noite engolir o dia, eu ia buscar água para fazer a comida e tomar banho.

Tive sete filhos, como os dias da semana, quatro com meu primeiro marido e três com o segundo. Hoje sou avó e bisavó. Tenho orgulho de minha família. Hoje em dia, vivo doente e vejo que as pessoas de que gosto estão indo embora. Não sou ninguém, não posso fazer nada, vivo calada, pois das cinzas vim e para as cinzas voltarei.

A vida é sofrida. Tenho apenas as lembranças.

Na minha vida, não tive tempo para ser criança. Nasci como uma adulta, vivi como uma adulta e vou morrer como uma idosa.”

Ysaévanne Feitosa - 7º Ano C


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