*Ericles da Silva Santos
Ouvi barulho e vozes crescentes, um zum-zum-zum empesteava o
assentamento onde moro. Quanto mais pedalava, mais me embrenhava num
corre-corre alucinado: meninos, mulheres, todos corriam para a frente do
barracão. Que enxame é esse? Que cabrunco está acontecendo?
Era o Pipa! De novo o Pipa? Dessa vez ele tinha ido longe demais.
Estava no alto do pau de sebo, quase pendurado no topo. Aquele mastro
tinha sido colocado ali dois dias antes. A festa ia acontecer no final
de semana: algodão-doce, corrida de ovo e pau de sebo.
“Desce daí, seu doido!” Uns jogavam areia, pedras...
O Pipa era mestre na arte de fazer papagaio. Quando não estava na roça
ajudando os pais, estava viajando nas asas das pipas. Ele se isolava.
Dizia que gostava da solidão. Solidão a três: ele, a pipa e a
imaginação... Logo eram seis e depois eram muitos...
Era diferente. Era mesmo feio. Chamava-o de louco. Particularmente, ele
tinha algo que me fascinava. Vez em quando soltava um sorriso azul.
O artista de caçar passarinho e criar pipas estudava comigo, e na mesma
sala. Outro dia, na escola, o professor falou do filho mais ilustre da
nossa cidade: Arthur Bispo do Rosário. Um misto de desapego e
curiosidade tomou conta da turma. Pipa foi um dos que deram uma chance
ao professor. Ouviu tudo atentamente. O professor falou da importância
de a gente incorporar o Bispo como elemento nosso. Ele lhe disse que
somos conterrâneos do homem e desconhecíamos sua obra, o seu valor, a
sua história. “As pessoas passam pela estátua do Bispo, na entrada da
cidade, e falam mal, e como falam mal: louco, preto, feio e pobre”.
Então ele nos pediu que acrescentássemos a palavra “gênio”.
— Gênio?
Aí o Pipa gritou: “Louco, preto, feio, pobre e gênio!” E riu! Riu tanto
que tumultuou a aula. Subiu na carteira e foi só presepada, muganga.
Imitava o Bispo do Rosário, com altas doses de esquizofrenia.
“Quer levar um sopapo, menino? Está ficando mais besta ainda. Deve ser a escola!
Já disse que Jamerson nunca foi bom da cabeça. E está piorando!”, gritava o pai, meio desesperado.
“Não ligo, não! Sei que não sou gênio, mas sinto dentro de mim que sou
diferente, que vejo muito diferente dos meus irmãos. Eles não me perdoam
por isso. Só minha mãe. Ela é a minha Nossa Senhora, sempre generosa.”
“Desce daí, meu filho! Você vai acabar matando sua mãe! Gente, ajude aí! Meu Pipa é sonâmbulo. Ele está é dormindo.”
Quando me viu no meio da multidão, fez cara de súplica. Não me fiz de
rogado! Joguei a bicicleta e desbravei aquele pau de sebo. Não tive
dificuldade. Aquele mastro já me conhecia. Agarrei o meu amigo pela
cintura, a multidão uivou, berrou, decepcionada.
Parecia um anjo de olhos cerrados. Tremia os lábios, soltava gaitados.
Na mão esquerda uma pipa azul. Resmungou. Abraçou-me. “Quem é que está
aí? Qual é a cor da minha aura?”
*Aluno da Escola Municipal Vereador João Prado, Japaratuba – SE.
Crônica vencedora da Olimpíada de Língua Portuguesa “Escrevendo o Futuro” – 2010.
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