Francisco José Alves - fjalves@infonet.com.br
Antônio Felix de Souza Neto - antfelixsouza@usp.br
(São professores)
Você
já ouviu alguém falar /AUKUÍRIS/, /TREVUÁDA/, /TERNONTÔNTE/? Se é um
sergipano natural e residente do município de Propriá/SE, com idade
acima de 70 anos, e tem em seu vocabulário palavras comuns aos variados
estratos socioculturais do seu tempo, certamente responderá que sim. E
se você não é esse propriaense, mas é sergipano, e tem essas palavras em
seu vocabulário ou já as ouviu na fala de pessoas de outros municípios
de Sergipe, é indício de que essas palavras identificam algo da fala de
sergipanos. Se você se sente sergipano de verdade, mas nunca ouviu isso
ou não se lembra de tê-lo ouvido, não se preocupe! Não é por isso que
você deixa de ser sergipano. Há outras coisas que identificam os
sergipanos. E para aqueles que nem mesmo conseguem decifrar esses
vocábulos, então aí vão suas respectivas representações gráficas na
escrita convencional: ‘arco-íris’, ‘trovoada’, ‘trasanteontem’ ou
‘trasantontem’. Agora, o leitor pode voltar à primeira linha deste texto
e comparar aquelas pronúncias do propriaense com a pronúncia
convencional destas últimas. O que há de diferente entre elas?
E
o que você diria de /KARKANHÁ/, para ‘calcanhar’; /MARIMBONDI/, para
‘marimbondo’; /TREISÓU/, para ‘terçol’; /XAMIXÚGA/, para ‘sanguessuga’;
/ISTÂMBU/, para ‘estômago’; /GUMÍTU/, para ‘vômito’; /BERKULÓZI/, para
‘tuberculose’; /ARUPEMBA/, para ‘urupema, peneira’; /APILÍDI/, para
‘apelido’; /KARÉRMA/, para ‘quaresma’; /LABIZÔNI/, para ‘lobisomem’;
/ÕIMBU/, para ‘ônibus’; /MUDUBÍM ou MINDUBÍM/, para ‘amendoim’?
Pois bem, todas estas pronúncias estão documentadas como características da fala de sergipanos do século passado.
Diante da norma culta, as pronúncias desses sergipanos se caracterizam por: (1) supressão de fonema (ex.: ‘tuberculose’ é /BERKULÓZI/); (2) adição de fonema (ex.: ‘terçol’ é /TREISÓU/); (3) substituição de fonema (‘arco-íris’ é /AUKUÍRIS/, ‘trovoada’ é /TREVUÁDA/, ‘vômito’ é /GUMÍTU/); (4) troca de lugar do fonema na palavra (ex.: ‘terçol’ é /TREISÓU/); e (5) troca de lugar do acento tônico da palavra (ex.: ‘vômito’ é /GUMÍTU/).
Mas
não é só no plano da pronúncia que se encontram características
linguísticas de sergipanos do século passado. Há ainda outras palavras
que foram documentadas como do vocabulário desses sergipanos: /KAKÓTA/,
/UNZONÊTU/, /KALIFÕN/, /TAÍN/, /UTÊMPU/, /MARRÁIU/, você as conhece? É
possível que não. Mas certamente conhece seus respectivos sinônimos:
‘rótula’, ‘óculos’, ‘sutiã’, ‘cicatriz’, ‘menstruação’, ‘bola de gude’.
Outras
palavras encontradas em Sergipe, também no século passado, apresentavam
acepções que podem ser peculiares do português daqueles sergipanos:
/KUMPANHÊRA/, /NEGUÍNHU/, /SIMPATÍA/, /MORTÁLHA ou MORTÁIA/, /XÊRU/ e
/ANTIGU/ foram encontradas com as seguintes acepções: ‘útero’, ‘sinal’,
‘franja’, ‘papel de enrolar cigarros’, ‘perfume’ e ‘desconfiado’. Você
já conhecia essas acepções?
Todos
os vocábulos que enfocamos aqui – com pronúncias e acepções de
sergipanos – foram extraídos de trabalhos de folcloristas, literatos,
linguístas etc., que datam desde início do século passado. Mas eles
ainda podem ser encontrados na fala de sergipanos hoje em dia.
Além
desses vocábulos que foram documentados por folcloristas, literatos,
linguístas etc., palavras/expressões como /BERTUÊJA/ (para dizer
‘brotoeja’), /KUAZIMÊNTI/ (para dizer ‘quase igual’), /XIMBÁ/ (com o
sentido de ‘fracassar’), /BIGÓRNA/ (com o sentido de ‘dormida, soneca’),
/BUKÁDU/ (com o sentido de ‘comida’), /DI ÔÔÔJI ou É D’ÔÔJI/ (para
dizer ‘já faz muito tempo’) são facilmente encontradas na fala de
sergipanos.
Como se explicam esses fatos linguísticos encontrados no português falado em Sergipe?
A
palavra /KUAZIMÊNTI/ (para dizer ‘quase igual’) parece derivar de
‘quase’, pois, apresenta a terminação ‘-mente’, característica dos
advérbios de modo. Essa palavra amplia o léxico da língua portuguesa,
pois não há no português qualquer outra palavra com o seu significado.
Curiosamente, ela também é encontrada em línguas mistas de povos
africanos que foram trazidos para o Brasil durante a época da
escravidão. Como se isso não bastasse, em francês, língua irmã do
português, existe a palavra quasiment (para dizer ‘quase’). Você acha que isso são só meras coincidências?
A
palavra /BUKÁDU/ (‘bocado’), embora mais regularmente usada com o
sentido de ‘muita/muito’ (ex.: tinha um /BUKÁDU/ de gente na rua; ele
ainda viveu um /BUKÁDU/) aqui em Sergipe atualmente, está dicionarizada
com a seguinte acepção: ‘porção de comida que cabe na boca’. Assim, além
da pronúncia (/U/ em lugar de ‘o’), dois outros processos podem ter
ocorrido ai: primeiro um processo unicamente semântico – o todo
(/BUKÁDU/ = ‘comida’) foi usado em lugar da parte (‘bocado’ = ‘porção de
comida que cabe na boca’); depois, a palavra mudou de categoria e de
significado – de substantivo ‘comida’ para pronome indefinido e advérbio
‘muita/muito’.
A
locução adverbial /DI ÔÔÔJI ou É D’ÔÔÔJI/ (com sentido de ‘faz muito
tempo’) apresenta uma característica muito particular. Ela só adquire
este sentido quando pronunciada com entonação específica, ou seja,
quando pronunciada com o Ô alongado (do tipo ÔÔÔ), como se fosse
cantando. Caso contrário, ela pode ser confundida com outra locução
adverbial (‘de hoje’), que significa ‘referente ao dia de hoje’. Ela
pode derivar de uma estrutura maior (ex.: não é de hoje...), que sofreu
redução e teve a perda compensada pela entonação.
Na
fala de sergipanos, há ainda expressões como /KABRÚNKU/, /KARÁIU/,
/GÔTA SERÊNA/, /FÍ DU KÂNSU MARIANU/, /FÍ DU KRÂNKU/, /FÍ DA KÓLA/, /FÍ
DI MARÍA MÁIZ EU/, regularmente usadas em xingamentos. Os xingamentos se
constituem sempre com conotações de nomes de órgãos genitais, coisas
indesejáveis (doença, sensações de vergonha, nojo etc.), coisas
censuráveis (religião, conduta social etc.). Sendo assim, é provável que
/KABRÚNKU/ derive da palavra ‘carbúnculo’ (do jargão da medicina), que
designa ‘infecção pela bactéria antraz’; /GOTA SERÊNA/ derive do nome da
doença ‘gota’, caracterizada por dores nas articulações; e /FÍ DU
KRÂNKU/ (onde /FI/ e /KRÂNKU/ devem ser variantes de ‘filho’ e ‘cancro’,
respectivamente) derive do nome da doença venérea ‘cancro’,
caracterizada por feridas na pele.
Você
pode até afirmar que, mesmo sendo sergipano, não usa essas palavras e
expressões (com as respectivas pronúncias, acepções e entonações
enfocadas aqui), mas eu duvido que você nunca tenha ouvido nenhuma delas
em Sergipe! Elas fazem parte do vocabulário de muitos sergipanos. Basta
se dar ao desfrute de ir às feiras, aos campos de futebol, aos parques e
a outros lugares públicos da capital ou se dar ao luxo de viajar pelos
municípios e povoados de Sergipe, sempre prestando atenção nas falas de
sua gente, ali mesmo, em longas prosas com seus conterrâneos e você
poderá ouvi-las.
Antes
de serem tratadas como erros de português, vícios de linguagem, desvios
da norma culta, impropérios etc., elas devem ser interpretadas como
realidades linguísticas das variedades do português falado em Sergipe. Algumas delas podem ser até mais antigas que a norma culta (polida) do português falado no Brasil.
Afinal..., podemos ou não tratá-las como sergipanismos linguísticos? Podemos ou não tratá-las como coisa original, exclusiva e genuinamente sergipana?
Ainda
não dá para responder com segurança a essas perguntas, pois, tudo o que
há em uma língua natural – e isto vale também para as falas (sotaques)
regionais – não se deve somente a criações linguísticas, mas também a heranças linguísticas e a empréstimos linguísticos. Muitos dados linguísticos são herdados ou emprestados sem sofrer qualquer alteração.
Há
certamente aspectos das falas dos sergipanos que os distinguem e os
identificam como tais. Talvez não somente na pronúncia dos vocábulos, no
próprio vocabulário, nas acepções dos vocábulos, na entonação, mas
também no ritmo da fala (duração de sílabas átonas, pré-tônicas,
tônicas, pós-tônicas etc.). Pode haver algum recurso de expressividade
peculiar das práticas linguageiras dos sergipanos: nas formas de
cumprimento, saudação, despedida, aprovação, reprovação, atenuação,
ironia, deboche, reprimenda etc.. Até mesmo nas trocas de turno (troca
de falante) nos diálogos: as formas de interrupção, as hesitações, as
pausas. Mas, é geralmente através de pesquisa que se identificam e se
patenteiam as características linguísticas de cada região, cada estado
etc.. Até onde eu sei, ainda não há pesquisa que revele originalidades
ou exclusividades linguísticas sergipanas. Enquanto isto não acontece,
os sergipanos (sergipanistas em especial) podem se contentar com o
sentimento de pertencimento linguístico, ao se depararem com
características linguísticas que lhes parecem familiares – familiares
dos sergipanos!
Fonte: Blog Primeira Mão
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