Autor: Jorge Henrique Vieira Santos
Tirei a foto acima há pouco mais de um mês, ao passar pelo município de Nossa Senhora das Dores, interior do Estado de Sergipe. Como trabalharia com meus alunos os casos de concordância verbal e nominal na língua portuguesa, julguei oportuno utilizar o exemplo acima para suscitar as primeiras discussões.
Algo curioso na cena, que me despertou a atenção, é o fato de haver, nitidamente, dois momentos distintos em que os dois enunciados foram utilizados para o mesmo fim: divulgar a comercialização de ovos e galinhas de capoeira.
Acredito que o enunciado da lateral direita da residência teria sido utilizado no primeiro momento, visto que se apresenta de maneira mais rudimentar. A julgar pelo aspecto geral da casa e pela conhecida realidade social em que vive boa parte da população brasileira, imagino que seu proprietário, quando decidiu comercializar ovos e galinhas para complementar a renda familiar, resolveu economizar os investimentos em publicidade e propaganda e definiu que ele mesmo pintaria o enunciado em sua residência, agora transformada em comércio. Sua divulgação ficou assim:
Enunciado 01 - “Vende-se ovos e galinha de capoeira viva e abatida”
Não há o que se discutir mais sobre a concordância do verbo que inicia essa frase. Segundo os estudos lingüísticos atuais, não há um problema de concordância nesse enunciado, uma vez que na língua falada no Brasil aconteceu uma resignificação da sintaxe de frases assim. O falante de nossa língua não considera que haja, em frases como essa, uma voz passiva pronominal, mas sim um sujeito indeterminado, o que justifica o verbo no singular. Para Bagno (1999, p.98) “O que a gramática normativa insiste em classificar como sujeito, a gramática intuitiva do brasileiro interpreta como objeto direto”. Isso pode ser comprovado no segundo enunciado, pois, embora seu autor tenha modificado a organização e flexão de alguns termos, a flexão do referido verbo permaneceu inalterada. O motivo que o teria levado a reestruturar sua mensagem não foi esse, certamente.
Como explicar então o segundo enunciado?
Acredito que nosso novo comerciante tenha prosperado e, no segundo momento, como dispunha de uma situação financeira mais favorecida, decidiu contratar mão-de-obra especializada para pintar sua divulgação comercial. Observem que, no momento em que foi tirada a fotografia, a residência está ganhando nova pintura (agora em tom escuro avermelhado) sobre a qual há o letreiro, em branco, com fontes caixa alta na primeira parte e com fontes em tamanho menor na expressão: “vivas e abatidas”. Organizada dessa forma, a propaganda mais destaque, pois o branco sobressai no tom avermelhado, principalmente se escuro, e o objeto principal de comercialização (ovos e galinhas) aparece em primeiro plano. Essa é uma estratégia de publicidade que nosso comerciante não conhecia quando pintou o primeiro enunciado, o que demonstra haver aí a participação de um profissional da propaganda. Sua segunda divulgação ficou assim:
Enunciado 02 - “Vende-se galinha e ovos de capoeira vivas e abatidas”
Pelo visto, tudo leva a crer que a intenção do comerciante era a de melhorar a publicidade seu produto. Não se sabe, no entanto, se a modificação foi sugerida pelo profissional da propaganda, pelos clientes de nosso amigo ou por sua própria consciência. O fato é que a frase publicitária foi alterada justamente no momento em que o comércio passava por uma reforma.
Apresentei essa questão aos meus alunos do 3º ano do Ensino Médio e lhes perguntei:
Por que o comerciante decidiu modificar o enunciado quando resolveu melhorar sua propaganda?
Alguns alunos apontaram a expressão “ovos e galinha de capoeira”, no Enunciado 01, como o fator que motivou a mudança. Segundo eles, essa expressão dá a entender que apenas a galinha é de capoeira, os ovos não. Daí a modificação para “galinha e ovos de capoeira”, Enunciado 02. Vamos analisar.
Parece que, para os alunos, e também para o nosso novo comerciante, quando se diz “ovos e galinha de capoeira”, o adjunto adnominal “de capoeira” não se refere a “ovos”, mas apenas a “galinha”. Como se tivéssemos:
OVOS + GALINHA DE CAPOEIRA
Já quando dizem “galinha e ovos de capoeira”, compreendem que o adjunto também se refere a “galinha”, como se tivéssemos:
GALINHA (DE CAPOEIRA) + OVOS DE CAPOEIRA
Como explicar essa compreensão se é comum que se vendam tanto ovos de capoeira quanto galinhas de capoeira nessa região?
Além disso, como explicar que o segundo enunciado tenha prevalecido sobre o primeiro?
A nova organização que a expressão ganha no Enunciado 02 cria problemas graves. A segunda enunciação produz uma afirmação cuja lógica está profundamente comprometida, pois a expressão “ovos de capoeira vivas e abatidas” é inaceitável. Mesmo assim, o segundo enunciado prevaleceu sobre o primeiro e a expressão "vivas e abatidas", embora tenha ficado em segundo plano, com letras menores, causa estranheza nos leitores, pois atenta contra os princípios de concordância da variedade padrão e da variedade coloquial.
Sabe-se que a concordância de um único adjetivo com uma série de substantivos parece estar influenciada por três fatores: a função sintática do adjetivo, sua posição e o gênero dos substantivos a que se refere. Quando em função sintática de adjunto adnominal e posposto aos substantivos, como ocorre no caso em questão, a maioria dos gramáticos afirma que o adjetivo pode concordar com o substantivo mais próximo ou ir para o plural, concordando com ambos. De qualquer forma, entende-se que o adjetivo, mesmo que estabeleça concordância apenas com o substantivo mais próximo, refere-se a todos os substantivos da série. Observem a frase:
Comprei camisa e calça branca (Exemplo 01)
Numa frase como essa, o falante entende que tanto a camisa quanto a calça são da cor branca.
Ocorre que a função de adjunto adnominal nos enunciados 01 e 02 não é desempenhada por um adjetivo, mas por uma locução adjetiva (de capoeira), que permanece invariável em situações como esta na língua portuguesa. Mesmo assim, isso não deveria interferir em sua significação, pois se tivéssemos uma frase como:
Comprei camisa e calça de linho (Exemplo 02)
Entenderíamos que a camisa e a calça são feitas de linho. Se a colocássemos no plural, teríamos:
Comprei camisas e calças de linho
Ainda assim, continuaríamos a entender que tanto as camisas quanto as calças são de linho.
No enunciados 01 e 02, no entanto, apenas o termo “ovos” está no plural. Observe o que aconteceria com o exemplo 02 se puséssemos apenas o termo camisas no plural:
Comprei camisas e calça de linho
Embora soubéssemos que o adjunto se refere aos dois substantivos da série, também teríamos a impressão de que apenas a calça é de linho, as camisas não.
Acredito que como a locução adjetiva fica invariável, portanto no singular, parece que, no entendimento de meus alunos e do comerciante, houve uma associação do adjunto adnominal do enunciado 01 apenas com o substantivo “galinha”, que também está no singular, e não com o substantivo “ovos”, que nos dois enunciados se encontra no plural. Observem:
Como, para o comerciante, o adjunto adnominal já se referia a “galinha”, faltava acrescentar à expressão o substantivo “ovos”, para que o adjunto passasse a se referir a ele também. Foi o que fez no segundo enunciado, ao inverter os termos de posição. Embora criasse uma expressão absurda, o comerciante estava mais preocupado com o fato de seus clientes não entenderem que ali também se vendiam ovos de capoeira, por isso preferiu a segunda enunciação.
O restante da frase ficou em letras menores e com menos destaque, uma vez que se tratava de uma informação adicional e não, necessariamente, essencial, pois o que importava para o comerciante era deixar claro para seus clientes que tanto as galinhas quanto os ovos vendidos eram de capoeira. Os dois adjetivos do final do enunciado passaram então para o plural por influência do termo “ovos”, do qual ficaram mais próximos. Mesmo assim, mantiveram o gênero feminino, pois se referem à “galinha”, não a “ovos”.
Foi assim, tentando compreender os mecanismos de concordância nominal da língua portuguesa numa situação real de comunicação, que iniciamos nossas discussões sobre esse assunto. Parece que dessa forma o interesse por esse conteúdo curricular ganhou uma significação maior e a curiosidade dos alunos por questões semelhantes aumentou.
Publicado em 14/08/09.
REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é e como se faz. São Paulo: Loyola, 1999.
Grande ideia, professor!
ResponderExcluirUma ótima ideia o professor em sala de aula , antes de mais nada, dar início ao assunto com uma abordagem exemplificada, mostrando a importancia de estudar determinado assunto. Dessa forma, os alunos ficam curiosos em continuar o assunto, já entendendo o motivo de estudar tema abordado pelo professor. Parabéns pelo seu método de ensino ,Jorge Henrique. Abraço.
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